Ocupar o mundo de amor é um ato antissistema
- Phirtia Silva
- 18 de nov. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 19 de nov. de 2023

Aqueles que estão solteiros ou abertos a novas relações afetivo-sexuais têm percebido que o panorama não é dos melhores. No meu caso, tenho presenciado a mesma história repetidas vezes: pessoas que começaram a se relacionar, mas que, no final das contas, não estão disponíveis emocionalmente para tal. Nesse sentido, as pessoas estão desejando se relacionar para preencher horas de ócio improdutivo, para fugir de questões emocionais outras, para receber carinhos passageiros, para estar no jogo. Não se relacionam para conhecer genuinamente alguém, não se relacionam para construir intimidade (e sexo não é intimidade), não se relacionam para ter ônus, apenas bônus. Não estão dispostas a se relacionar, mas a consumir presenças.
Se relacionar implica reservar um espaço na vida para tal, implica ter tempo, executar um trabalho emocional, um trabalho mental e um trabalho de cuidado, por mínimo que seja. Todos estes “ônus” são considerados contraprodutivos no tipo de sociedade em que vivemos. Não é para menos que o trabalho do cuidado executado por mulheres é tão invisibilizado no capitalismo contemporâneo, apesar de ser basilar para a produção e reprodução da vida. Quem está disposto a executar o trabalho afetivo? Quem está disposto a construir e sedimentar relações profundas?
Em uma grande metrópole como São Paulo, onde as pessoas vivem pelo trabalho, são consumidas para produtividade estéreo, são obcecadas por agilidade e ostracizam a perda de tempo, onde pode habitar o afeto? Ao contrário, habita-se a solidão, consumindo-se grandes volumes de presenças.
Até as relações de amizade são superficiais. Amigos que também não estão dispostos a serem contraprodutivos, que não sabem se afetar e serem afetados, que não criam espaços consolidados, cuidadosos e duradouros para deixar os “amigos” entrarem. Nem mesmo os emocionados se salvam. Tenho visto que ser “emocionado” fala mais sobre carência afetiva e sobre dependência emocional, do que sobre de fato assumir o “ônus” de se relacionar profundamente. As pessoas “emocionadas” podem até ser mais rápidas e intensas, mas isso não quer dizer que querem desempenhar o trabalho emocional, muito menos que tenham vidas estruturadas para incorporarem alguém nelas.
Além de tudo, ainda estamos vivendo um período de muita instabilidade e redefinições de paradigmas. As pessoas já não querem mais relações que cerceiam as suas liberdades, que as fazem abdicar de aspectos importantes da vida, que anulam a sua subjetividade. Ao mesmo tempo, não conseguem libertar-se do amor pautado pela ideia de propriedade (um fundamento que também superficializada o afeto). Deste modo, diversas perspectivas contraditórias, monogâmicas e não-monogâmicas, têm deixado muita gente em estado de inação.
Soma-se a isso os medos urbanos, o medo de se relacionar, o medo de ser ferido em meio a tanta violência. Agrega-se, também, o fato de que as pessoas precisam arrefecer o seu lado emocional para conseguir lidar com tanto sofrimento socioambiental. As epidemias de ansiedade e de depressão são fortes indicadores deste embate entre o racional e o emocional. A metrópole quer aniquilar este último e gera, neste movimento, angústias coletivas intermináveis, uma sensação de incongruência, justamente porque é incongruente anular uma parte constitutiva da nossa existência. Estamos negligenciando um lado que nos faz potência, que nos faz subversivos. Por outro lado, privilegiamos uma racionalidade que nos deprime, que nos faz destruir o mundo onde vivemos.
Esses dias vi um trecho de um trabalho audiovisual (ver aqui) de uma artista que me fez refletir muito sobre habitar zonas áridas como São Paulo. No vídeo, uma mulher, sozinha, em meio a uma zona de destruição, entre restos de árvores queimadas, cava um buraco através de socos e cotoveladas muito fortes em um chão duro e seco. O buraco, por sua vez, não cedia um milímetro frente ao seu desespero e à sua força. No final, o mundo permanece como estava: sem os seus esforços. Árido. Terra de ninguém.
Continuar de peito aberto em um mundo em destruição é sobre não se deixar colapsar junto com ele; é resistir a uma vida estéril. Apesar de todos os pesares, é preciso aprender a amar outra vez.
Contudo, a cidade nos demanda muita energia diária, nos incute ideais formatados para ocupar todo o nosso tempo de vida. Nesse sentido, para aprender a amar novamente, é preciso, também, aprender a subverter a ordem; é preciso contradizer os ideais neoliberais; é preciso aprender a viver o ócio; a se afetar com as tristezas alheias e desigualdades do mundo. Para aprender a amar de novo é preciso reconhecer que vivemos um mundo em destruição e que o que ele nos oferece como alternativa possível de crescimento é uma farsa. Ocupar o mundo de amor é desocupá-lo de produtividade e consumismo. Ocupar o mundo de amor é um ato antissistema.
Autoria: Phirtia Silva - Cientista Social pela Universidade de São Paulo
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